
Dizem as línguas mais ferinas que Adão, nosso grande patriarca, se divertiu as tantas antes de desposar nossa grande mãe, Eva. Segundo os boatos, espalhados pelos seguidores da esotérica Cabala, seus divertimentos realizaram-se com Lilith (1), primeira mulher a caminhar pelas bandas do Éden. Contudo o divertimento foi muito mais pro lado dele do que pro dela. Sentindo-se ofendida por permanecer na parte de baixo durante os coitos divinos, reclamou ao Grande Juiz para interceder a seu favor. Não sendo atentida, e possuidora de uma personalidade bastante forte, pegou suas trochas, que consistiam de meia dúzia de frutas, e rumou para terras ermas. Wierus (2), demonólogo antigo, afirma que Lilith acabou por se casar novamente (alguns fofoqueiros afirmam que Satanás foi seu segundo companheiro), e tornou-se mãe e rainha dos demônios súcubos.
Durante a Idade Média, diz a lenda, Lilith aparecia nas noites de lua nova sob a forma de uma mulher esbelta que seduzia e arrastava os homens aos becos, tendo relações sexuais com eles, e durante tal ato, no qual Lilith permanecia encima do companheiro, os matava asfixiados. Da mesma época também corre a lenda de que Lilith aparecia durante a madrugada para buscar os recém nascidos e leva-los ao inferno. Para proteger as criancinhas, as mães assustadas grafavam em seus berços o nome de três anjos. A Igreja Católica, como era de se esperar, desmentiu tais boatos.
O caso é que estas estórias transformam Lilith na figura da mulher infernal, insubmissa e sedutora, seria a inimiga primordial dos bons costumes, do amor cristão, da castidade e da família. Por outro lado, dado a postura contestatória frente as regras divinas da submissão da mulher ao homem, Lilith também é considerada mitologicamente a primeira feminista.
Talvez ai também se esconda o mistério pelo qual nós, animais mamíferos que nos escondemos sob a denominação de homo sapiens sapiens, tenhamos demorado tantos milênios para realizar o que alguns chamam de Revolução Sexual: sofremos sob a herança genética de uma mulher com pouco pulso e bastante sem sal.
O que me trás a construção deste texto, contudo, não é nossa pouca sorte, mas sim a nova novela das seis da Rede Globo, Eterna Magia. A trama se desenvolve numa pequena cidadela rural em meados dos anos 60 (imagino), cuja lenda regional envolve a presença de uma áurea mágica assim como a presença de bruxas. O drama se constrói sobre a vida de Conrado (Thiago Lacerda) e Nina (Maria Flor), quando a irmã mais velha desta, Eva (Malu Mader), que construiu uma brilhante carreira como pianista na Europa, volta à cidadezinha. Conrado e Nina amam-se com o melhor amor cristão que há, e estão prestes a se casar e constituir família, até que Eva cruza com Conrado em lugar ermo, e sem saber quem ele é, o deseja. Nesse encontro, fruto do desejo e do poder de sedução de Eva, ambos se beijam. A partir disso Eva decide conquistar o caipira, e Conrado, sabendo quem ela é, adentra um inferno existencial formado por culpa e desejo. A Nina, Conrado ama, a Eva ele deseja.
Não quero me prolongar na descrição dos fatos. Meu intuito aqui é refletir sobre as imagens do feminino transmitidas em cadeia nacional por nossa amada Rede Globo. Mais precisamente gostaria de discutir a dualidade do feminino, representada pela meiga, angelical e mirrada Nina e pela sedutora, contestadora e maquiavélica Eva. A primeira representa a bondade, a castidade, a ingenuidade tipicamente cristãs. A segunda, de forma bastante irônica visto seu nome, representa o mito da mulher fatal protagonizado inicialmente por Lilith.
É comum assistirmos na televisão, seja em novelas como essa, como também, e principalmente, em filmes (alguém lembra de Sharon Stone em Instinto Fatal?), a representação da figura feminina como uma figura diabólica, capaz de corromper a pureza do masculino, como nosso Conrado, através do poder de sedução que sua imagem forte e independente transmite. Mais que isso, a mulher sedutora é representada como diabólica, como traiçoeira, como inimiga dos bons costumes e da tradição que os prega. Visto de outra forma, dicotomiza-se o amor (visto de forma cristã) e a sedução na figura da mulher. Dicomiza-se o bem e o mal, sendo a mulher casta a defensora do primeiro, e a mulher sedutora a possuidora dos poderes do segundo. Por isso essa mulher deve ser combatida, deve ser temida, deve ser eliminada (3). O mesmo não acontece na construção dos personagens masculinos. Embora vilãos, poucas e raras vezes são eles tão destruticos da moral católica como as mulheres vilãs o são.
Ressalta-se desta forma a disseminação de valores ideológicos pela mídia brasileira. Não que isso seja grande novidades nesta Terra Brasilis, mas que este fato realizado em tempos de liberação sexual, de luta pela igualdade feminina, pelos direitos dos GLBTS, pela defesa do princípio da cidadania para tod@s, indepentente da orientação sexual, pela defesa ao direito da própria expressão da sexualidade, de sua experienciação numa época em que as subjetividades são cada vez construídas de forma mais superficiais, que os relacionamentos pós-modernos são baseados em amores líquidos, e que a construção dos corpos se encarrega de construir ondas de anoréticas, bulímicas e vigorexos decorrentes do culto a uma beleza pré-estabelecida pela mídia. Nestes tempos, a diabolização do feminino como feminino sedutor é realmente uma atitude pré-histórica, no sentido de querer fazer a história andar pra trás (4).
Quero concluir esta breve reflexão ressaltando o seguinte: existe em nossa cultura ocidental um medo perverso da figura de todo feminino que se manifesta em sua origem, do feminino "puro", primordial, feminino incapaz de ser capturado pela moral conservadora do cristianismo, que rompe com a moral burguesa da sexualidade, que expressa sua sexualidade e sua sedução, que se mostra independente da tutela masculina, e aí mesmo se encontra sua sensualidade, sua atração, seu mistério, e, sobre o homem burguês, cristão, conservador, adorador dos "bons costumes", sua capacidade de leva-lo ao beco, e deste ao inferno.
Rafael Machado do Livramento
(1) Não tenho em memória onde li sobre estas informações de Lilith pela primeira vez. Coloco aqui então algumas referencias que o leitor poderá encontrar na internet para compreender melhor esta figura mitológica:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lilith http://www.rosanevolpatto.trd.br/lilith.html http://www.astro.com/astrology/in_lilith_p.htm http://www.vanessatuleski.com.br/mitologia/lilith.htm
(2) Dicionário de Ciências Ocultas. Parte II. Edição Especial Revista Planeta. Editora Três.
(3) Vale lembrar aqui a novela Mulheres de Areia, onde a mesma dualidade é representada pelas irmãs gêmeas Raquel e Ruti. Quem se esquecerá dos infinitos "A Rutinha é boa, a Raquel é má" repetidos por Tonho da Lua ao longo de seus capítulos?
(4) Na construção patriarcal de nossa sociedade não sobrou espaço para boas representações femininas, existem apenas as menos piores. Dicotomizei nesse texto Eva e Lilith, mas isso se refere a uma dualidade como mulher cristã e como mulher não cristã. Embora hoje o cenário é muito distinto de 2000 anos atrás, vale lembrar que o Catoliscismo considera Eva a causadora do pecado original, fonte de todas as desgraças do homem.
2 comentários:
Vou indicar o teu blog no nosso! Parabéns! E sempre se meta nas nossas louras... Maíra Rabassa
Esse texto me fez pensar na maravilhosa Patrícia Galvão - Pagu, para os íntimos.
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